domingo, 1 de julho de 2012

uma questão de bom senso

Ontem Letícia, do blog Cem + Um, postou um texto denominado Olímpiada de Opressões que me fez pensar um pouco sobre o meu papel em relação à uma minoria que tem sido excluída, discriminada, marginalizada e desprezada: transexuais. Eu já vinha pensando a respeito disso quando eu descobri que existia cissexismo, pessoas cis e trans*, transfobia na lista de Blogueiras Feministas no meu Gmail. Mas o texto dela ontem, com algumas feministas corroborando posições que eu pessoalmente discordo fortemente, me fez pensar muito sobre isso. Aliás, não só o texto, mas toda a postura dela em relação ao tema.

Primeiramente, eu acho bom ter em mente alguns conceitos:

Uma pessoa cissexual é aquela que nasceu sendo classificada de um determinado gênero e se identifica com ele. Não sei dizer se essa é a melhor forma de o dizer, mas vamos pegar meu caso. Eu, Luna, fui classificada do sexo feminino assim que eu nasci, porque eu possuo uma vagina. Meu corpo biológico é de uma fêmea. Eu sempre me identifiquei sendo uma mulher, em concordância com o meu órgão genital, com a classificação que me foi dada quando eu nasci. Eu me entendo como mulher, eu me sinto como mulher integralmente. Logo, por todas essas coisas citadas, eu sou uma cissexual.

O oposto de cissexual, na outra pontinha da escala, é a pessoa transexual. Uma pessoa transexual é aquela que foi classificada de um determinado gênero ao nascer. Por exemplo, Joãozinho tinha um pênis ao nascer, então papai, mamãe e médicos disseram que Joãozinho é homem. Recebeu a fitinha azul no pulso e toda a sociedade vê Joãozinho como um homem. Porém Joãozinho não se identifica com o gênero masculino e sim com o feminino. Joãozinho se sente uma mulher desde que se entende por gente, porém essa identidade difere do que a sociedade atribuiu. Logo, ele acaba saindo da norma e recebeu a palavra "transexual".

Por isso que existe a palavra "cissexual". Porque quando você dá uma palavra à algo que é considerado uma norma, você faz com que aquilo deixe de ser norma e se equivale ao que seria fora de norma. Por exemplo, homossexual e heterossexual. Antes, uma pessoa que fosse homossexual era considerada homossexual e uma hetero era considerada "normal". A palavra "homossexual", então, acaba assumindo o teor de "saiu da norma". Como se o heterossexual fosse o padrão, o default da coisa toda. Só que aí se a galera pega e começa a dizer: "espera, você não é 'normal', você é heterossexual", aí a coisa muda. Um dos lados deixa de virar a norma, pra ambos ficarem equivalentes e isso faz com que o 'homossexual' perca sua patologia.


É a mesma coisa. Quando você está dizendo: "ei, eu sou cissexual", você está dizendo que você tem uma identidade cissexual. Ela é a identidade que é aceita, corroborada e difundida como um padrão na nossa sociedade. Ela é considerada o "normal". Acontece que cissexuais são apenas o outro lado da moeda nessa coisa de identidade. Há transexuais e cissexuais. Cissexuais não são mais normais que trans*, nem trans* são pessoas doentes que precisam de tratamento enquanto cissexuais são pessoas não-doentes. Esses são conceitos que absorvemos pela sociedade, mas assim como muitos conceitos, é estúpido. A questão da patologização (?) dos trans* é uma questão problemática e eu não tenho mora para falar a respeito, já que eu sou cis e tudo o mais. Mas eu, pessoalmente, não acho que pessoas trans* sejam doentes ou qualquer coisa do tipo. Eu sei que elas estão classificadas como portadoras de transtorno e tudo o mais e com isso conseguem cirurgia para mudança de sexo (enquanto órgão genital, não identidade), mas eu reamente não consigo compreender como a transexualidade pode ser vista como uma doença. Eu simplesmente acho que é uma variação de identidade. Nem todos os homens nascem com pênis. Alguns nascem com uma vagina e são classificados como mulheres, mas se eles se identificam como homens, então não vejo a necessidade de questioná-los. Não existe carteirinha pra provar ser mulher. É identidade e ninguém tem nada com isso. Uma variação natural, e caso o homem assim deseje e prefira um pênis, que tenha acesso à tudo que seja necessário, como a cirurgia, hormônios e tudo o mais.

Mas, enfim, voltando à questão do post de Letícia.

Uma das coisas que costuma me irritar são minorias oprimindo outras minorias. Gays sendo misóginos. Mulheres sendo racistas. Negros sendo classistas. A lista segue. Isso é perfeitamente possível porque as pessoas reúnem muitas características. Eu sou mulher, cis, classe média C. Sou muito sensível à misoginia porque estou numa posição desfavorecida pela sociedade sendo mulher, porém sendo cissexual eu acabo pensando e falando muita merda que totamente ofende trans*, simplesmente porque por eu ter uma identidade considerada normal pela sociedade, então eu nunca parei para pensar sobre quem destoava. Eu acho que foi esse pequeno exercício que faltou nessa polêmica toda.

Sugiro seguinte: todo mundo que chegou até aqui nesse post, faça um pequeno exercício. Faça uma listinha tipo: sou do gênero tal. Eu me identifico com ele? Sim ou não? Sou gay, hetero, bi? Sou de que classe social? Sou branca, parda, negra? Eu tenho alguma deficiência? E por aí vai. Várias características. E depois você para e vê: quais das características te fazem perder algum tipo de privilégio (direitos sociais, por exemplo) perante à sociedade. E quais fazem parte da norma social? Reflita sobre essas em específico. Pense em como deve viver uma pessoa que não vive de acordo com aquilo. Eu considero isso um exercício de cidadania e de bom senso.


Se você não entendeu, vamos fazer um exemplo com Maria. As seguintes características de Maria:

Mulher.
Cissexual.
Lésbica.
Classe média B (digamos que ela tenha estudado em escola particular, tenha tido empregada, etc).
Parda.
Gorda.
Não possui nenhuma deficiência.

Vemos aqui, então, o perfil de Maria: ela é desprivilegiada em relação aos homens, aos heterossexuais, às pessoas brancas (porém é privilegiada em relação às negras), aos magros. E é privilegiada em relação aos trans*, aos mais pobres e aos que possuem algum tipo de deficiência. Com isso, Maria pode sentar, pensar bastante e concluir: eu sou discriminada por ser mulher, lésbica e gorda. Já ouvi piadas racistas e elas me incomodam. Então custa nada eu reconhecer que trans*, assim como eu sendo lésbica, por exemplo, estão em uma posição desfavorecida. Não necessariamente pior ou melhor, porque não é competição de quem é mais discriminado pela sociedade. Mas trans* são discriminados de forma muito específica simplesmente por serem trans*, e quando você tira deles o direito de serem cidadãos, você está os colocando em uma posição de marginalização. Então eu, Luna, considero esse um exercício que todos devem fazer. Eu tenho uma identidade cissexual. Ninguém questiona minha identidade de gênero. Eu não tenho que provar que sou mulher para ninguém. Ninguém se pergunta como faço sexo. Ninguém se pergunta em qual banheiro eu entro. Em suma, eu tenho privilégios que me foram conferidos pela sociedade assim que nasci por ser cissexual. Uma pessoa trans* não tem isso.

Eu acho isso muito simples de entender. Todo mundo tem identidade. A identidade é composta de vários fatores. Alguns desses fatores te fazem ficar à margem da sociedade, em diferentes graus. Outros fatores te dão privilégios. Não é nenhuma vergonha ter características que te dão privilégios (ser branco, ser hetero, ser homem, ser cis, etc), mas não tem nada mais vergonhoso que gente babaca que se recusa a reconhecer os privilégios que tem, negando, assim, a discriminação, o preconceito, a marginalização e a exclusão que o outro lado sofre.

{ post que achei por acaso na internet e que explica isso bem melhor que eu. e a melhor parte: foi escrito por uma mulher trans, logo ela tem moral pra falar de algo que eu não tenho: Perguntas Frequentes sobre Cissexuais, Cisgênero e Privilégio Cis

outros links super úteis, todos indicados pela linda da @malu_mad
legalizetrans (fonte de todas as imagens)

Um comentário:

Cláudia disse...

Eu não tinha nem noção da existência do termo cissexual... Mas agora que li seu post, percebi que faz todo o sentido. Como as pessoas já me acham estranha, quando eu disser que eu sou cissexual, vão dizer "Eu já sabia...", provavelmente pensando que se trata de alguém que só obtém prazer sexual com ET's ou algo do tipo.